sexta-feira, julho 21, 2006

Quotas Racistas

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:(...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, (...) nos termos seguintes:(...)XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos
direitos e liberdades fundamentais;

As quotas racistas nas universidades estão só começando a causar problemas. Bem que eu gostaria de dizer simplesmente que pelo menos o projeto está gerando alguma discussão saudável, mas de saudável a conversa não tem nada. As partes envolvidas estão trocando farpas e não argumentos, e qualquer um que se manifeste em contrário é devidamente patrulhado como racista, e não alguém com uma opinião em contrário.

A questão das quotas engloba três aspectos: um legal, um ético-científico e um simplesmente prático. O debate legal me parece por demais simples. Não é possível que uma lei adote como fundamento para a aplicação de qualquer sanção, positiva ou negativa, os critérios de origem, cor, raça e sexo. E, pelo amor de Deus, não me venham com essa de que é uma discriminação positiva, então permitida. Tudo que gera um privilégio para A também gera uma perda para B. Quem discorda, por favor elabore um modelo lógico e abstrato de lei de quotas que considera constitucional, algo como: se cor A então quotas, se cor B então sistema universal. Só com letras, depois eu escolho o significado das letras, pois a constitucionalidade da proposição, impessoal, não pode depender do significado das letras.

Mas a questão é mais tola. Do ponto de vista ético-científico é fazer uma distinção que não existe, pois a ciência há muito reconheceu que não existe raça. Se o Estatuto Racial de Nuremberg for aprovado, obrigando a identificação por raça no sistema de saúde e documentos oficiais, lutarei até a última instância pra ser classificado como integrante da raça humana. Não que não existam outras, como demonstra a fauna política de Brasília. Uma das maiores “dificuldades” da iniciativa é que no Brasil não existe muito bem definido esse negócio de raça, por isso os infelizes querem forçar essa identificação (conscientização...) através da classificação forçada. Muitas pessoas se consideram brancos, mas em outros países seriam considerados de outras cores. O ponto é que a agenda desse projeto é criar uma divisão na sociedade brasileira que efetivamente não existe.

Aqui só Deus sabe quem é quem. Todo mundo é brasileiro e o taxista é italiano pra torcer na final da copa pra alguém. Falam em 50% de quotas para negros, mas não sei onde eles estão. Ando na rua e não encontro, aliás encontrei mais deles em Paris. Que inveja deles. Agora eu vou ser treinado para me “conscientizar” de quem são “eles”.

No Brasil a questão de genótipo contra fenótipo chega no limite. A mistura para a formação do que é o povo brasileiro é tamanha que somos uma prova da futilidade de classificar, ainda mais de maneira binária, um povo. E, os carecas do ABC que me desculpem, mas quero ver encontrar alguém que não tem um ascendente na áfrica nos últimos 10.000 anos.

Existe racismo, certamente, assim como existe discriminação contra mulheres, jovens e idosos, só para citar alguns. Mas é preciso perceber que não estamos falando de “minorias” (eu adoro quando ouço alguém chamar as mulheres de minorias...), mas do nosso tecido social como um todo que tem de ser tratado de maneira uniforme, não o dividindo ainda mais.

Do ponto de vista prático a coisa talvez seja até pior. Primeiro, a adoção de quotas dentro de um processo seletivo visa privilegiar um candidato que teve uma performance inferior no mecanismo de seleção padronizado. Não adianta querer dourar a pílula, assim como querer ler nisso mais do que existe, pois não se pode dizer que ele tenha um desempenho acadêmico necessariamente menor. Num primeiro momento se sabe apenas que ele vai pior num teste. A questão é: qual a finalidade do teste, e quão eficiente é ele? A finalidade do teste deveria ser selecionar estudantes que terão o melhor desempenho acadêmico. Nada além disso. Quanto à eficiência, ela é questionável, mas sabemos que vestibulares bem feitos, que trabalham com muita análise estatística, atingem em grande parte seu objetivo.

Se a finalidade das quotas for romper os defeitos do vestibular, que estaria impedindo a entrada de estudantes com bom potencial acadêmico, trata-se de uma falácia, pois o teste continuará o mesmo, com seus eventuais vícios. Se o processo de seleção é um problema, ele tem de ser mudado, até porque suas deficiências afetam todas as cores do arco-íris. A adoção de entrevistas, apreciação de currículos e outras técnicas são opções, embora eu continue a preferir a análise objetiva e impessoal dos testes, mesmo com seus defeitos.

Se a finalidade não é essa, e realmente não é, mas permitir a entrada de estudantes com um potencial acadêmico inferior, então temos um conflito entre a finalidade da seleção e o sistema de quotas, principalmente quando se fala de 50% dos alunos, como no projeto de lei.Uma universidade, ao menos uma que tenha muito mais demanda e oferta para justificar as quotas, não é um curso por correspondência que não é afetado pelos seus alunos. A seleção rigorosa determina o nível de um curso tanto quanto a escolha dos professores. Em São Paulo muitos professores dão aula na USP e em outras faculdades particulares, mas reconhecem que a aula que podem dar na USP é muito diferente. Um professor da ECA disse que na USP podia discutir, em outra particular de primeira linha tinha que chamar a atenção dos alunos, e numa terceira tinha de puxar um banquinho e sentar com os alunos e perguntar se queriam ir pro barzinho em frente. O corpo discente de uma universidade é seu maior patrimônio. E alterar de maneira tão drástica os critérios de formação dele terá, necessariamente, um impacto na qualidade do ensino. As particulares de primeira linha, desobrigadas das quotas, certamente ganharão com maior qualidade de alunos, por exemplo, com prejuízo das instituições oficiais.

Por fim, me lembro de um artigo que li na Time há uns dez anos sobre affirmative action. Nele era colocado o problema da desistência muito alta. Alunos muito bons, que poderiam entrar em boas universidades, entravam em outras mais competitivas, como Harvard, e lá acabavam enfrentando problemas e desistindo. Ele ponderava que essa mesma pessoa poderia ser bem sucedida em uma outra ótima universidade em que ele estivesse no topo dos seus pares. Ao que me consta a UERJ (*) e o seu sistema de quotas já conseguiu causar um bom estrago, com a qualidade dos cursos caindo. Não quero nem imaginar no que aconteceria com a USP ou a Unicamp.

(*) Post modificado para corrigir a citação da UFRJ, pois o correto é UERJ.